Um sonho possível...
por Paulina Piscitelli ¹
“Tantas vezes anulamos nossas vidas, nos deparamos com experiências que não são as nossas, deixamos de lado nossas profissões, vaidades, prazeres e, simplesmente, nosso eu... Passamos a viver o outro, somos nossos filhos, nossos maridos, nossos pais... que sermos nós, deixa de ser apropriado!”
Nos percebermos como sujeitos de direito e de autonomia, capazes de exercitar as próprias escolhas, não é uma tarefa fácil dentro de uma sociedade ainda muito machista, onde as desigualdades entre homens e mulheres persistem e são reproduzidas nos espaços públicos e privados de forma sutil e através de comportamentos considerados normais em nosso cotidiano.
Basta verificarmos que, embora muitos direitos conquistados no mundo, a violência contra a mulher evidencia a característica ainda machista das sociedades modernas. A violência persiste e nem sempre é percebida no dia a dia porque está inserida num espaço onde o agressor não é uma pessoa estranha, mas o marido, o companheiro, os pais, enfim, todos aqueles que se relacionam ou se relacionaram afetivamente com a mulher em seu âmbito familiar.
Durante anos a violência contra a mulher foi denunciada e combatida pelos movimentos feministas no Brasil e no mundo, mas, somente com a redemocratização do país nas décadas de 1980 e 1990, os movimentos de mulheres e populares conseguiram pressionar o Estado brasileiro para que este cumprisse o seu papel enquanto Estado Democrático precursor de uma sociedade sem discriminação e, com isto, forçá-lo a ratificar as convenções internacionais até então existentes para a garantia de direitos das mulheres nos país. Foi assinada, então, a Convenção Internacional para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher – elaborada pela ONU (Organização dos Estados Unidos) em 1979). Na medida em que os movimentos se fortaleciam, mais direitos eram conquistados: Criou-se em 1984 a primeira delegacia da mulher em São Paulo (1ª DDM). Em 1988 foi incluída no texto constitucional, em seu artigo 226, o parágrafo 8º, a determinação de que o país criaria mecanismos para coibir a violência doméstica, e em 1995 o Brasil ratificou a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Doméstica.
Tais instrumentos não foram suficientes para evitar tantos crimes bárbaros ocorridos contra a mulher no Brasil. Um exemplo marcante, devido a trajetória de luta, foi o caso de Maria da Penha, brasileira, casada com o professor universitário Marco Antonio Herredia Viveros, o qual em 1983 cometeu uma tentativa de homicídio contra sua esposa com seqüelas irreversíveis – deixando-a paraplégica. O agressor, seu marido, não parou e tentou novamente matá-la, dessa vez eletrocutá-la no chuveiro. O então marido foi processado e condenado definitivamente quase 19 anos depois do ocorrido, cumprindo apenas um ano e seis meses de prisão em regime fechado.
Maria da Penha não se calou ante as dificuldades impostas e inseriu-se numa luta constante para que os seus direitos e de todas as brasileiras fossem cumpridos e respeitados. Junto do movimento de mulheres e outras entidade de direitos humanos, iniciou-se uma luta para que o Brasil cumprisse as convenções internacionais e o próprio texto constitucional. Enfim, Organizações Internacionais foram acionadas e o Brasil condenado a reparar o dano sofrido por Maria da Penha.
O país em 2002, junto com entidades de luta por direitos humanos e movimentos de mulheres, passou a discutir um projeto-lei para coibir e prevenir a violência doméstica, assim, em 07/08/2006 foi criada a Lei 11.340, conhecida popularmente como Lei Maria da Penha.
A nova lei conceituou violência doméstica como “toda e qualquer ação ou omissão que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial, praticado por pessoa com quem a ofendida conviva no âmbito familiar ou qualquer relacionamento íntimo de afeto atual ou já encerrado”. Portanto, definiu os tipos de violência: física, psicológica, sexual, patrimonial e moral.
Os avanços da lei foram muitos; o reconhecimento da violência doméstica como questão de ordem pública – a violência contra a mulher deixa a esfera privada para inserir-se como responsabilidade estatal; a criação de Juizados Especiais de Violência Doméstica - competência cível e criminal - medidas de proteção (afastamento do agressor do lar, suspensão de porte de arma, alimentos provisórios, dentre outras) e educativas (inserção em programas sociais). A criação de novas Delegacias da Mulher (DDM), Casas de Acolhidas Sigilosas, Coordenadoria da Mulher e Centros de Referência, também são exemplos de conquistas.
No entanto, embora importantes todos os instrumentos e mecanismos de combate à violência doméstica, tendo em vista permitirem às mulheres lutar por seus direitos dentro de um sistema legal, estes, por si só, não foram e não são suficientes para evitar as tantas histórias trágicas que nos deparamos no cotidiano, as Marias, Mércias, Elisas, Eloás, Sandras, Leilas... enfim, todas as mulheres que continuam violentadas, agredidas e mortas no país
Não resta dúvida que possuímos um sistema de garantias de direitos, mas a efetividade desse sistema é fragilizada quando o inserimos num contexto de uma sociedade historicamente machista e discriminatória, o que nos permite dizer que o sistema se sujeita às influências dessa sociedade e, portanto, sua atuação deixa a desejar quanto a efetivação da proteção das mulheres contra a violência doméstica.
Ante essas dificuldades reais que nos permeiam, não basta às mulheres um sistema de garantias – ressaltando sempre a sua importância – mas é primordial o empoderamento da mulher, inserindo-se como agente de transformação nas lutas sociais e políticas, e apropriando-se de sua própria vida para a construção de uma sociedade melhor.
Paulina Piscitelli ¹
Advogada
Núcleo de Proteção Jurídico Social / CREAS
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